Chamada para 2027-1: Políticas da memória e ficção especulativa

2025-11-18

Dossiê de 2027-1: Políticas da memória e ficção especulativa

 

Organização:

Lua Gill da Cruz (UFRJ)

Alan Osmo (Unicamp)

Gabriel Salvi Philipson (PUC-SP)

 

Data limite para submissão de artigos: 1º de novembro de 2026. 

 

Uma longa tradição crítica que inclui os estudos sobre testemunho, teorias do trauma, do arquivo, e estéticas da catástrofe segue reproduzindo-se e movendo-se na contemporaneidade a partir de uma preocupação com os passados de violências e as formas como permanecem inscritos em corpos, territórios e arquivos fragmentários. As tentativas de ouvir as vítimas da violência colonial, racial, de gênero, climática ou ligadas a guerras e ditaduras e de elaborar experiências de um passado que foi apagado atravessam transversalmente não apenas a historiografia, mas também os limites da linguagem e da representação, exigindo novas formas de inscrição. Se, como aponta Seligmann-Silva (2022), o memoricídio é parte fundamental de processos violentos sobre os quais se busca apagar os rastros de crimes, silenciar vítimas e negar perspectivas que representam as suas vozes, as formas de acesso ao passado, às possibilidades de aproximação aos arquivos e à historiografia parecem ser insuficientes para lidar com a complexidade e profundidade do passado. Nesse sentido, Saidiya Hartman (2024) afirma que é preciso constituir uma abordagem que alie pesquisa à imaginação, ou, podemos dizer, uma mescla cuidadosa entre o histórico, o ficcional e o fabulativo, de forma a insuflar carne às experiências relegadas ao silêncio e à invisibilidade. Na contemporaneidade, portanto, as discussões dos campos da memória e do trauma têm proposto novas intersecções transversais ao dialogar com práticas de fabulação crítica, narrativas especulativas e artes que trabalham com o não-documentado e com perspectivas contra-hegemônicas. Aqui, a imaginação deixa de ser algo indesejado ou mero suplemento do arquivo para se tornar elemento nuclear de uma ética e ciência da memória. Assim, a ficção especulativa emerge como uma estratégia que articula política e estética, oferecendo novos caminhos para inscrever e elaborar um passado marcado por violências que ressoam no presente. A produção artística e literária assume um papel central, não apenas como reflexão estética, mas como uma ética e teoria da memória que respeita os silêncios, as ausências e os mistérios inerentes à experiência do trauma. Esse trabalho ativo de recordar, que se constrói a partir dos vestígios e restos difíceis de apreender, desafia a estética e a ética, exigindo respeito às lacunas, silêncios e segredos que permanecem; uma busca por reconstituir sentidos sem a pretensão de recuperar o passado em sua totalidade. As múltiplas crises de nossa era se estendem também às políticas da memória da natureza ou do não-humano - as plantas, os animais, os micélios, a terra, os rios - frente às devastações, à monocultura e aos desastres, demandando um exercício fabulativo capaz de ouvi-las dizer, de fazer-com, como mostra Donna Haraway (2016), rearticulando a relação entre cultura e natureza, entre humano e não-humano, e estabelecendo outras cosmopolíticas entrelaçada também com tradições de saberes não-ocidentais.

 

Este dossiê convida a refletir sobre a interseção entre políticas da memória e a ficção especulativa de maneira ampla, propondo investigar como a criação artística e literária pode contribuir para a rearticulação de passados marcados por violências sistematicamente apagadas, bem como para a articulação de memórias que dialoguem com os desafios da reparação. Nesse sentido, essa chamada aceita textos que se debrucem transdisciplinarmente sobre (mas não se limitam a):

 

  • A criação artística e literária e sua contribuição para uma elaboração da memória de um passado violento;
  • O anarquivamento: o arquivo e seus limites como base da memória, da (re)imaginação e da fabulação crítica;
  • As encruzilhadas da ficção, dos eventos traumáticos, das disputas de narrativas e da decolonialidade;
  • As relações das artes com espaços em que ocorreram eventos traumáticos como locais da memória, do esquecimento e da disputa de narrativas;
  • As relações entre trauma, fabulação e crises e catástrofes climáticas;
  • As memórias das violências colonial, racial, de gênero, climática e ligadas a guerras e regimes ditatoriais.

 

Bibliografia básica:

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. São Paulo: Alameda, 2020.

BENSUSAN, Hilan. História sul-americana da imortalidade: (a partir de rumores com sotaque). Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2024.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo.São Paulo: Veneta, 2020.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

HARAWAY, Donna J. Staying with the Trouble: making kin in the Chthulucene. Durham e Londres: Duke University Press, 2016.

HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, [S. l.], v. 23, n. 3, p. 12–33, 2020. DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27640. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27640. Acesso em: 25 set. 2024.

HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2015.

MBEMBE, Achille. Necropolitics. Public Culture 1, January 2003; 15 (1): 11–40. https://doi.org/10.1215/08992363-15-1-11.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.

ROSA, Allan da. Águas de homens pretos: imaginário, cisma e cotidiano ancestral (São Paulo, Séculos 19 ao 21). São Paulo: Veneta, 2021.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A virada testemunhal e decolonial do saber histórico. Campinas: Editora Unicamp, 2022.

YUSOFF, Kathryn. A billion Black Anthropocenes or none. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2018.

 

 

 

Politics of Memory and Speculative Fiction

 Dossier Proposal: A long critical tradition that includes studies on testimony, theories of trauma, the archive, and the aesthetics of catastrophe continues to reproduce and move within the contemporary landscape through a concern with past violences and the ways in which they remain inscribed in bodies, territories, and fragmentary archives. Attempts to listen to the victims of colonial, racial, gendered, climatic violence, or violence related to wars and dictatorships, and to work through experiences of an erased past, traverse not only historiography but also the limits of language and representation, demanding new forms of inscription. If, as Seligmann-Silva (2022) points out, memoricide is a fundamental part of violent processes aimed at erasing the traces of crimes, silencing victims, and denying perspectives that represent their voices, then the forms of access to the past, to the archives, and to historiography seem insufficient to deal with the complexity and depth of that past. In this sense, Saidiya Hartman (2024) argues that it is necessary to constitute an approach that combines research with imagination, or, we might say, a careful blend of the historical, the fictional, and the fabulist, in order to breathe flesh into experiences relegated to silence and invisibility. In contemporary thought, therefore, discussions in the fields of memory and trauma have proposed new transversal intersections by engaging with practices of critical fabulation, speculative narratives, and arts that work with the undocumented and with counter-hegemonic perspectives. Here, imagination ceases to be something undesirable or a mere supplement to the archive to become a core element of an ethics and science of memory. Thus, speculative fiction emerges as a strategy that articulates politics and aesthetics, offering new ways to inscribe and work through a past marked by violences that resonate in the present. Artistic and literary production assumes a central role, not only as aesthetic reflection but as an ethics and theory of memory that respects the silences, absences, and mysteries inherent to the experience of trauma. This active work of remembering, built from traces and remains that are difficult to grasp, challenges aesthetics and ethics alike, demanding respect for the gaps, silences, and secrets that persist; a search to reconstitute meaning without the pretense of recovering the past in its entirety. The multiple crises of our era also extend to the politics of memory of nature or of the nonhuman—the plants, animals, mycelia, earth, rivers—in the face of devastation, monoculture, and disasters, demanding a fabulist exercise capable of hearing them speak, of making-with, as Donna Haraway (2016) shows, rearticulating the relation between culture and nature, between human and nonhuman, and establishing other cosmopolitics interwoven with non-Western knowledge traditions.
 This dossier invites reflection on the intersection between the politics of memory and speculative fiction in a broad sense, seeking to investigate how artistic and literary creation can contribute to the inscription of pasts marked by systematically erased violences, as well as to the articulation of memories that engage with the challenges of reparation. In this sense, this call welcomes texts that address, transdisciplinarily (but not exclusively):

 

  • Artistic and literary creation and its contribution to the working through of the memory of a violent past;
  • The unarchiving: the archive and its limits as the basis for memory, (re)imagination, and critical fabulation;
  • The crossroads of fiction, traumatic events, narrative disputes, and decoloniality;
  • The relations between the arts and spaces where traumatic events occurred, as sites of memory, forgetting, and narrative dispute;
  • The relations between trauma, fabulation, and climatic crises and catastrophes;
  • The memories of colonial, racial, gendered, climatic, and war or dictatorship-related violences.

 

Bibliography

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. São Paulo: Alameda, 2020.

BENSUSAN, Hilan. História sul-americana da imortalidade: (a partir de rumores com sotaque). Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2024.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo.São Paulo: Veneta, 2020.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

HARAWAY, Donna J. Staying with the Trouble: making kin in the Chthulucene. Durham e Londres: Duke University Press, 2016.

HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, [S. l.], v. 23, n. 3, p. 12–33, 2020. DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27640. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27640. Acesso em: 25 set. 2024.

HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2015.

MBEMBE, Achille. Necropolitics. Public Culture 1, January 2003; 15 (1): 11–40. https://doi.org/10.1215/08992363-15-1-11.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.

ROSA, Allan da. Águas de homens pretos: imaginário, cisma e cotidiano ancestral (São Paulo, Séculos 19 ao 21). São Paulo: Veneta, 2021.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A virada testemunhal e decolonial do saber histórico. Campinas: Editora Unicamp, 2022.

YUSOFF, Kathryn. A billion Black Anthropocenes or none. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2018.

 

 

A Revista Terceira Margem é uma publicação quadrimestral (a partir de 2019) do Programa de Pós-graduação em Letras (Ciência da Literatura) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Divulga pesquisas nas áreas de Teoria Literária, Literatura Comparada e Poética, voltadas para literaturas de língua portuguesa e línguas estrangeiras, clássicas e modernas, contemplando suas relações com filosofia, história, artes visuais, artes dramáticas, cultura popular e ciências sociais. Também se propõe a publicar resenhas críticas, para avaliação de publicações recentes. Buscando sempre novos caminhos teóricos, Terceira margem segue fiel ao título rosiano, à inspiração de um pensamento interdisciplinar, híbrido, que assinale superações de dicotomias em busca de convivências plurívocas capazes de fazer diferença.

É exigido que o autor possua o doutorado completo para submeter artigos. Serão aceitos artigos de mestrandos e doutorandos, desde que em parceria com um doutor.

Favor conferir as políticas editoriais e as Normas para apresentação de trabalhos da revista.

Para se cadastrar clique aqui.