As Palavras sobre a página: reflexões sobre a Filologia, antiga e nova.
Tradução de “The Words on the Page: Thoughts on Philology, Old and New”, de Matthew James Driscoll
DOI:
https://doi.org/10.24206/lh.v11i2.66326Palavras-chave:
Tradução, Ecdótica, Nova filologia, Sagas IslandesasResumo
Versão em português de “The Words on the Page: Thoughts on Philology, Old and New”, de Matthew James Driscoll, traduzida do inglês por Mario Newman de Queiroz e Lorenna Bastos.
***
Relevância do texto (com a palavra os tradutores):
Em 1989, o filólogo, linguista Bernard Cerquiglini publica Éloge de la variante, o pequeno livro trazia propostas de profundas reavaliações conceituais para o tradicional campo da crítica textual. A partir de reconsiderações do lachmannismo iniciadas por Joseph Bédier, representando os descontentamentos dos medievalistas para com aqueles métodos, Cerquiglini aproxima-se da tradicional filologia com teorizações de suas bases advindas dos estudos de Jacques Lacan, de Roland Barthes, de Michel Foucault, de Paul Zumthor, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, da Estética da Recepção da Escola de Costança, mais a arguta percepção das mudanças que a informática e as conexões em rede trariam, enfim, de todo um contexto de pensamento muito rico que se interrelacionava naqueles idos de 1970, 1980, 1990 a que se costuma dar o nome geral de pós-estruturalismo ou ainda pensamento da diferença.
O pequeno livro de Cerquiglini obteve forte impacto até para além do que em suas poucas páginas propunha, pois representava, em sua modéstia, um verdadeiro manifesto das necessárias aproximações entre campos de estudos de línguas e literaturas que se divorciaram: os estudos filológicos da ecdótica divorciados de campos teóricos que ela demanda, na filosofia, na linguística, na história, nos estudos de literatura, nos estudos sobre o sujeito, o autor, o texto, a escrita, a imprensa, a oralidade, os meios de circulação e produção de conhecimentos. Trazia a inquietação de que o idealismo mecanicista das formulações lachmannianas precisava sofrer mudanças, abrir-se efetivamente para as teorizações do século XX. A intensidade e profundidade do que Cerquiglini tratava em tão poucas páginas (em torno de 120) foi logo percebida e celebrada pelos medievalistas. Assim, Stephen G. Nichols, editor da mais proeminente revista de estudos medievais das Américas, a Speculum, em janeiro de 1990, recepcionava a publicação francesa atribuindo-lhe o nome que a tem destacado “New Philology”, ou “filologia material”.
Apesar da enorme resistência que tem sofrido nos ambientes tradicionais da crítica textual, predominantemente lachmanniana, a New Philology, mais francamente aceita nos meios medievalistas, tem grassado enormes avanços nos estudos clássicos e já atinge os estudos bíblicos.
No Brasil, as propostas de Cerquiglini chegaram antes mesmo da publicação do famoso Éloge de la variante em livro, através do filólogo Celso Cunha, que, em contato com aquele autor e Paul Zumthor, publicava em 1985, Significância e movência na poesia trovadoresca, em que já tangenciava aquelas preocupações dizendo dos “defensores da movência”. Em 1992, outro eminente estudioso, mestre dos mestres, sempre muito atento à produção mundial no seu campo de conhecimento, Sílvio Elia, em conferência no III Encontro de Ecdótica e Crítica Genética, apontava para os dois rumos futuros próximos dos estudos de crítica textual: a crítica genética e a New Philology de Cerquiglini. Com enorme sabedoria, Sílvio Elia observava essa transformação como inevitável movimento da passagem do tempo na substituição de bases epistemólogicas. Com o falecimento desses dois mestres um hiato se formou dentro do campo específico da crítica textual (ecdótica) brasileira.
O campo não ficou inteiramente vago com a morte daqueles filólogos. Estudiosos como Philippe Willemart, que acabou se dedicando à crítica genética e a autores estrangeiros, e João Adolfo Hansen, que desde A sátira e o engenho, numa abordagem foucaultiana das questões textuais, têm insistido na necessária abertura dos preceitos tradicionais da ecdótica, mas encontram enorme impermeabilidade no meio. Esse último, e Marcello Moreira, em Para que todos entendais: poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra... (2013), realizam das mais profundas abordagens críticas dos estudos de ecdótica no Brasil. O texto que aqui traduzimos é de um dos mais importantes estudiosos das sagas islandesas, também denominadas sagas vikings, filólogo medievalista de renome internacional, o professor Matthew James Driscoll tem se dedicado a realizar abordagens em conformidade com as propostas da New Philology, sendo dessa um dos seus maiores difusores. Tem-se assim um texto que serve como introdução às propostas dessa concepção de ecdótica. Ainda, apresenta o cenário dos estudos de textos medievais em países nórdicos em que o mesmo predomínio de um aprendizado técnico da ecdótica, destituído de questionamentos teóricos, se faz tal como aqui. Revela também a existência de ambiente de preconceitos entre os adeptos da crítica textual tradicional a todo questionamento New Philology.
No esforço de tradução, acrescentamos diversas notas que buscam facilitar a leitura aos não iniciados nos estudos de ecdótica, reforçar os traços didáticos presentes no texto do professor Driscoll para uma introdução às problemáticas da New Philology, bem como aproximar o leitor de língua portuguesa do contexto dos estudos das sagas islandesas a que o eminente filólogo se reporta.
Referência da publicação original:
DRISCOLL, M. J. The Words on the Page: Thoughts on Philology, Old and New. In: QUINN, J.; LETHBRIDGE, E. (orgs). Creating the medieval saga: Versions, variability and editorial interpretations of old norse saga literature. Odense, DK: University Press of Southern Denmark, 2010. p. 87-324. Disponível em: www.driscoll.dk/docs/words.html.
Downloads
Referências
Referências da tradução:
AZEVEDO FILHO, L. A. de. Iniciação em crítica textual. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: EdUSP, 1987.
BJORK, R. E. (Ed.). Oxford Dictionary of the Middle Ages. 4 v. New York: Oxford University Press, 2010.
CERQUIGLINI, B. Éloge de la variante: histoire critique de la philologie. Paris: Seuil, 1989.
MOOSBURGER, T. de B. Tradução, introdução e notas. In: Sagas islandesas. São Paulo: Hedra, 2009.
MOOSBURGER, T. de B. Tradução, introdução e notas. In: Saga de Njáll. Dois Irmãos, RS: Clube de Literatura Clássica, 2024.
PRICE, N. Vikings: a história definitiva dos povos do Norte. Tradução de Renato Marques de Oliveira. São Paulo: Planeta, 2021.
QUINN, J.; LETHBRIDGE, E. (Orgs.). Creating the medieval saga: versions, variability and editorial interpretations of Old Norse saga literature. Odense, DK: University Press of Southern Denmark, 2010.
THE SKALDIC PROJECT: an international project to edit the corpus of medieval Norse-Icelandic skaldic poetry. Disponível em: https://skaldic.org/m.php?p=skaldic.
TREHARNE, E.; WALKER, G.; GREEN, W. The Oxford Handbook of Medieval Literature in English. New York: Oxford University Press, 2010.
Referências essenciais do texto original (indicadas pelo autor):
BÉDIER, J. La tradition manuscrite du Lai de l’Ombre: réflexions sur l’art d’éditer les anciens textes. Romania, v. 54, p. 161–196, 321–356, 1928.
CERQUIGLINI, B. Éloge de la variante: histoire critique de la philologie. Paris: Seuil, 1989.
CERQUIGLINI, B. In praise of the variant: a critical history of philology. Tradução de Betsy Wing. Baltimore; London: Johns Hopkins University Press, 1999.
DONALDSON, E. T. The psychology of editors of Middle English texts. In: DONALDSON, E. T. Speaking of Chaucer. London: Athlone, 1970. p. 102–118.
DRISCOLL, M. J. Plans for a new edition of the Fornaldarsögur, anno 1937. In: NEY, A.; JAKOBSSON, Á.; LASSEN, A. Myter og virkelighed i fornaldarsagaerne (The legendary sagas: Myths and reality). Copenhagen: Museum Tusculanum Press, 2008. p. 17–25.
FEBVRE, L.; MARTIN, H. J. L’apparition du livre. (L’évolution de l’humanité). Paris: Michel, 1958.
FIDJESTØL, B.; HAUGEN, O. E.; RINDAL, M. Tekstkritisk teori og praksis: nordisk symposium i tekstkritikk, Godøysund 19.–22. mai 1987. Oslo: Novus, 1988.
JÓNSSON, F. Ævisaga Finns Jónssonar eftir sjálfan hann. Safn Fræðafjelagsins um Ísland og Íslendinga, v. 10. Copenhagen: Møller, 1936.
JÓNSSON, F. (Ed.). Egils saga Skallagrímsson tilligemed Egils større kvad. Samfund til udgivelse af gammel nordisk litteratur, v. 17. Copenhagen: Møller, 1886–1888.
FIRCHOW, E. S.; GRIMSTAD, K. (Eds.). Elucidarius in Old Norse translation. (Rit Árnastofnunar, v. 36). Reykjavík: Stofnun Árna Magnússonar, 1989.
FREDERIKSEN, B. O. Det første stemma, dets videnskabshistoriske baggrund og skaber(e). In: LÖNNROTH, L. (Ed.). The Audience of the Sagas. The Eighth International Saga Conference. Gothenburg. Preprints. v. 2. Gothenburg: Gothenburg University Press, 1991. p. 110–120.
FREDERIKSEN, B. O. Håndskrift og stamtræet. In: HUNOSØE, J.; KIELBERG, E. (Eds.). I tekstens tegn. Copenhagen: Reitzel, 1994. p. 33–64.
FREDERIKSEN, B. O. Under stregen – lidt om det eksterne variantapparati historisk perspektiv. In: FORSSELL, P.; KNAPAS, R. (Eds.). Varianter och bibliografisk beskrivning. Helsingfors: Svenska litteratursällskapet i Finland, 2003. p. 13–78.
GABLER, H. W. Textual criticism. In: GRODEN, M.; KREISWIRTH, M.; SZEMAN, I. (Eds.). The Johns Hopkins Guide to Literary Theory and Criticism. 2. ed. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2005. p. 901–908.
GOODY, J. The interface between the written and the oral. In: GOODY, J. Literacy, family, culture, and the state. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.
GREETHAM, D. C. Textual scholarship: an introduction. New York: Garland, 1994.
GREETHAM, D. C. Theories of the text. Oxford: Oxford University Press, 1999.
GREG, W. W. The rationale of copy-text. Studies in Bibliography, v. 3, p. 19–36. In: BRACK Jr, O. M.; BARNES, W. (Eds.). Bibliography and textual criticism: English and American authors, 1700 to the present. Chicago; London: University of Chicago Press, 1969. p. 41–58.
HAUGEN, O. E. Utgjevning av norrøne tekster i Noreg: eit historisk overblik og ei metodisk vurdering. Nordica Bergensia, n. 1, p. 137–174, 1994.
HAUGEN, O. E. Constitutio textus: intervensjonisme og konservatisme i utgjevinga av norrøne tekster. Nordica Bergensia, n. 7, p. 69–99, 1995.
HAUGEN, O. E. The spirit of Lachmann, the spirit of Bédier. Paper read at The Annual Meeting of The Viking Society, University College London, 8 nov. 2002. Disponível em: http://www.ub.uib.no/elpub/2003/a/522001/haugen.pdf.
HOLM, P. O. G. Carl Johan Schlyter and textual scholarship. Saga och Sed: Kungl. Gustav Adolfs Akademiens Årsbok. Uppsala: Lundequistska bokhandeln, 1972. p. 48–80.
JAKOB BENEDIKTSSON, S. Jón Helgason. In: Dansk biografisk leksikon, v. 6, p. 208–209. Copenhagen: Gyldendal, 1980.
JENSEN, H. Eiríks saga víðförla: Appendiks 3. In: The Sixth International Saga Conference, 28.7.–2.8.1985. Workshop Papers. v. 2. Copenhagen: Det Arnamagnæanske Institut, 1985. p. 499–512.
JENSEN, H. Om udgivelse af vestnordiske tekster. In: HOLMBERG, B.; FREDERIKSEN, B. O.; RUSS, H. (Eds.). Forskningsprofiler udgivet af Selskab for Nordisk Filologi. Copenhagen: Gyldendal, 1989. p. 208–220.
JÓN HELGASON. Planer om en ny udgave af skjaldedigtningen. Acta philologica scandinavica, v. 19, p. 130–132, 1950.
JÓN HELGASON. Finnur Jónsson. Aarbøger for nordisk Oldkyndighed og Historie, 1934. p. 137–160.
JÓN HELGASON. Handritaspjall. Reykjavík: Mál og menning, 1958.
KENNEY, E. J. Textual criticism. Encyclopædia Britannica, 15. ed., v. 20. Chicago: Encyclopædia Britannica, 1985. p. 614–620. Disponível em: https://www.britannica.com/eb/article-9108631.
LOUIS-JENSEN, J. Jón Helgason, 30. jun 1899 – 19. jan. 1986. Københavns Universitet: Årbog, 1986. p. 27–30.
MAAS, P. Textkritik. 3. ed. Leipzig; Berlin: Teubner, 1927.
MAAS, P. Textual criticism. Tradução de Barbara Flower. Oxford: Clarendon, 1958.
MCGANN, J. J. From text to work: digital tools and emergence of the social text. Variants: The Journal of the European Society for Textual Scholarship, v. 4, p. 225–240, 2005.
MCGANN, J. J. Theories of texts. London Review of Books, 18 fev. 1988. p. 20–21.
MCGANN, J. J. A critique of modern textual criticism. Charlottesville: University of Virginia Press, 1992.
MCGANN, J. J. The textual condition. Princeton: Princeton University Press, 1991.
MCKENZIE, D. F. Bibliography and the sociology of texts. (The Panizzi Lectures 1985). London: British Library, 1986. Reimpressão: Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
NICHOLS, S. Philology and its discontents. In: PADEN, W. D. (Ed.). The future of the Middle Ages: Medieval literature in the 1990s. Gainesville, FL: University of Florida Press, 1994. p. 113–141.
NICHOLS, S. Philology in a manuscript culture: the new philology. Speculum: A Journal of Medieval Studies, v. 65, n. 1, p. 1–10, jan. 1990.
NICHOLS, S. Why material philology? Some thoughts. In: Philologie als Textwissenschaft: Alte und Neue Horizonte.
ONG, W. J. Orality and literacy: the technologizing of the word. London: Methuen, 1982.
PICKENS, R. T. The future of Old French studies in America: the “old” philology and the crisis of the “new”. In: PADEN, W. D. (Ed.). The future of the Middle Ages: Medieval literature in the 1990s. Gainesville, FL: Florida University Press, 1994. p. 53–86.
ROBINSON, P. Current issues in making digital editions of medieval texts – or, do electronic scholarly editions have a future?. Digital Medievalist, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: https://journal.digitalmedievalist.org/article/id/6953/.
ROBINSON, P. Where we are with electronic scholarly editions, and where we want to be. Jahrbuch für Computerphilologie Online, v. 1, n. 1, 2004. Disponível em: http://computerphilologie.digital-humanities.de/jg03/robinson.html.
RUH, K. (Ed.). Überlieferungsgeschichtliche Prosaforschung: Beiträge der Würzburger Forschergruppe zur Methode und Auswertung. Tübingen: Niemeyer, 1985.
SHILLINGSBURG, P. Scholarly editing in the computer age: theory and practice. 3. ed. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1996.
SLAY, D. (Ed.). Hrólfs saga kraka. Copenhagen: Editiones Arnamagnæanæ B I, 1960.
SLAY, D. The manuscripts of Hrólfs saga kraka. Copenhagen: Bibliotheca Arnamagnæana, v. XXIV, 1960.
SPERBERG-McQUEEN, C. M.; BURNARD, L. TEI P5: Guidelines for electronic text encoding and interchange. Disponível em: https://www.tei-c.org/release/doc/tei-p5-doc/en/html/index.html.
TERVOOREN, H.; WENZEL, H. Zeitschrift für Deutsche Philologie, v. 116, p. 10–30, 1997.
TÓMASON, S. Er nýja textafræðin ný? Þankar um gamla fræðigrein. Gripla, v. 13, p. 199–216, 2002.
TIMPANARO, S. La genesi del metodo del Lachmann. Firenze, 1963. Tradução alemã: Die Entstehung der Lachmannschen Methode, por Dieter Irmer. Hamburg, 1971. Tradução inglesa: The genesis of Lachmann’s method, por Glenn W. Most. Chicago: University of Chicago Press, 2005.
WOLF, K. Old Norse – new philology. Scandinavian Studies, v. 65, n. 3, p. 338–348, 1993.
ZUMTHOR, P. Essai de poétique médiévale. Paris: Seuil, 1972.
Downloads
Publicado
Edição
Seção
Licença
Copyright (c) 2025 Mario Cesar Newman de Queiroz, Lorenna Bastos

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International License.
Os autores que publicam nesta revista concordam com o seguinte:
a. Os autores detêm os direitos autorais dos artigos publicados; os autores são os únicos responsáveis pelo conteúdo dos trabalhos publicados; o trabalho publicado está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional, que permite o compartilhamento da publicação desde que haja o reconhecimento de autoria e da publicação pela Revista LaborHistórico.
b. Em caso de uma segunda publicação, é obrigatório reconhecer a primeira publicação da Revista LaborHistórico.
c. Os autores podem publicar e distribuir seus trabalhos (por exemplo, em repositórios institucionais, sites e perfis pessoais) a qualquer momento, após o processo editorial da Revista LaborHistórico.